Por Thiago Carvalho.
Muito bem, eis que chego de
viagem e vejo no meu e-mail um convite do senhor Bruno Mariani: “Barata, que tal fazer um relato do show do
Roger Waters pro Grave em Casa?” Óbvio que não poderia recusar!
Primeiramente, um apelo. Se você
que está lendo esse texto é do time dos que pensam “Legal, show do Roger
Waters, mas gostaria de ver mesmo era um show do Pink Floyd”, sugiro
fortemente que você se desapegue dessa mentalidade e vá correndo assistir a
esse show. Vá mesmo! Até
porque isso é o mais próximo possível de um show do Floyd que você pode chegar
hoje em dia. David Gilmour e Nick Mason não estão no palco, mas a banda que
acompanha o Waters nessa turnê é primorosa, toca todas as músicas com enorme
fidelidade e, ao mesmo tempo, com um toque pessoal de cada um dos músicos na execução. A saber: a responsabilidade de executar as
partes do Gilmour no show é muito bem exercida por Dave Kilminster e Snowy
White (guitarras) e pelo Robbie Wyckoff (voz), todos músicos de competência
inquestionável. Só não dá para fechar os olhos e fingir que é o Pink Floyd
completo no palco porque nesse show não se pode sequer piscar os olhos! Se você gosta de boa música (e se
está entrando nesse blog, acredito que se enquadre nesse perfil) não pode
perder esse show. Se você gosta de mega produções, não deveria de jeito nenhum
perder esse show. Mas se você gosta de Pink Floyd, te digo que você responderá
no dia de juízo se não tiver uma boa justificativa para ter perdido esse show!
Feito o apelo, vamos lá.
Might like to go to the show?
Como bem representado na capa do Delicate Sound of Thunder, um show do
Pink Floyd é uma junção megalômana e perfeccionista de som e imagem. Quanto à
imagem, até que dá para ter alguma ideia do que se passa em um evento desses pela
gravação em vídeo do Pulse. Mas o apuro dos músicos do Pink Floyd com o som em
um show... isso só estando presente no local para entender. Sempre tive esse desejo
e só agora pude realizá-lo.
E dá para dizer: é tudo o que eu pensava e mais um pouco! |
Chego, sento na minha cadeirinha
a 10 metros do palco, olho pra frente e vejo duas torres de PA Line Arrays apontados na
minha direção. Penso comigo: “É, a porra vai ser séria!”. Mas falamos de Roger
Waters, o cara que peitou shows quadrifônicos já na década de 70. Então é
preciso olhar para todos os lados.
Na imagem dá para ver que existem
mais três conjuntos de PA pendurados nas torres de delay no meio do campo. Além disso,
mais caixas de som são espalhadas ao longo das arquibancadas superiores do
estádio. Ou seja, a plateia fica cercada pelo som e o estádio se transforma em
um enorme home theater. O resultado é impressionante: em momentos como no final
de “In the Flesh?”, quando é
projetado o som de caças em voos rasantes, todos passam a olhar para cima
procurando os benditos aviões. O mesmo ocorre com som do helicóptero no começo
de “Another Brick In The Wall”, por
exemplo. E mais do que isso: mesmo estando em um estádio com mais de 40 mil
pessoas é possível escutar com detalhes as nuances de cada instrumento! Mas se o som é um escândalo, o
mesmo vale para as imagens. Na foto acima também dá para ver os três abrigos de onde
saem as projeções para o palco. E pelo tamanho e quantidade de projetores, já
deu pra ter uma ideia da qualidade das imagens, certo? São vídeos em altíssima
definição, melhor do que a que pode ser vista em cinemas, por exemplo.
Nessa foto é possível ter uma
dimensão do tamanho do muro. Ele avança pelos dois anéis inferiores do estádio.
E nesse caso estamos falando do Monumental de Nuñez, um dos maiores da América
Latina (compare a altura das pessoas no final do muro). Quanto ao comprimento,
a parede cenográfica avança de um lado ao outro do estádio. É grande pacas,
muito maior do que eu tinha imaginado. O resultado são imagens com essa
qualidade. Não custa relembrar que estamos em um estádio, ao ar livre, não em um cinema.
Is this not what you expect to see?
Ir para o show do The Wall é como
assistir o novíssimo remake de seu filme favorito. Você já conhece todo o
roteiro, já sabe a ordem das músicas, conhece os elementos principais que
certamente estarão lá, mas está curioso para ver o resultado do toque pessoal
do novo diretor e no uso das novas tecnologias em prol da velha história. No caso do show, você sabe que
vai ver um muro ser construído entre você e a banda; sabe que assistirá boa parte
do espetáculo sem ver a banda completa; sabe que vão pintar os famosos bonecos
gigantes e a projeção das sensacionais animações criadas por Gerald Scarfe para
o filme de Alan Parker. Também já entra no estádio esperando ver tudo o que
está ligado a uma apresentação do Pink Floyd/Roger Waters: projeções de efeitos
sonoros, lasers, maquete gigante de avião sobrevoando a plateia, um porco
voador gigante, vídeos surrealistas projetados na grande tela circular do meio
do palco...
Sim, tudo isso está presente no
show.
A diferença – e aí está a beleza do
álbum conceitual com uma temática atemporal – é que essa nova turnê foi
desenvolvida dando destaque a uma temática mais antibélica. Se enquanto a
turnê/filme do início dos anos 80 enfoca o papel dos traumas pessoais do Waters
na construção do seu muro, levantado entre o artista e as outras pessoas, nesse
novo show a ênfase é no papel das guerras e conflitos armados humanos na divisão
entre as pessoas. Agora, cada pessoa que morre de forma estúpida em algum
conflito imbecil ao redor do mundo se transforma em um tijolo no muro. Agora, o muro que sobe divide em
frações a humanidade inteira. E o efeito visual e sentimental disso no show é
absolutamente chocante.
Aí entra na história o caso do
Jean Charles, morto pela polícia inglesa no metrô de Londres em 2005. Você deve
ler por aí que o Waters fará uma homenagem a ele durante o show. E deve pensar:
deve ser uma imagem dele no telão ou algum discursozinho do Waters para agradar
os fãs brasileiros, um tipo de “I Love Brazil, Carnaval, Caipirinha” mais
politizado e só. Nada disso! Primeiro que não é
uma homenagem para o show brasileiro e sim algo que fez parte de todos os shows
da turnê mundial (deduzo isso pelo que vi no show em Buenos Aires, a confirmar).
E segundo, que não é bem uma homenagem e sim um capítulo a parte dentro do
roteiro do show, com animações próprias e tudo. E quer mais? Ele canta uma
música nova sobre o caso Jean Charles, com um arranjo inspirado na harmonia de
Another Brick In The Wall (não encontrei a letra na internet). Ou seja, o show
terá todas as músicas do álbum duplo The
Wall com mais essa nova música sobre o caso Jean Charles. E só! Quer mais?
Homenagem a Jean Charles. |
Outra coisa que achei bacaníssima
do espetáculo é a forma como a atenção da plateia é conduzida durante a
apresentação. Tudo minuciosamente calculado para que a todo tempo seus olhos se
surpreendam com algo novo. Você escuta sons de aviões te sobrevoando e olha pra
cima, mas quando volta os olhos para o palco o muro já mudou totalmente de cor!
Você foca os olhos em um tijolo aberto do muro, quando de repente vira o
pescoço e vê que foi montado um quarto de hotel pendurado no muro exatamente na
sua frente e você nem percebeu que algo estava sendo feito no palco antes das
luzes chamarem sua atenção pra lá. Você observa um músico cantando de cima do
muro quando de repente ele desaparece e surge exatamente do lado dele um
guitarrista mandando um solo daqueles... o efeito de um sumindo e outro
aparecendo, feito com uso de holofotes e roupas pretas, é perfeito! E nisso
você passa o show todo falando: “Mas que diabos de bruxaria foi essa!”.
Mas toda essa pirotecnia é
conduzida em prol da reflexão da história. Um momento muito bonito acontece
durante o intervalo, na metade do show. Durante os 15 minutos de pausa são
projetadas no muro imagens de pessoas assassinadas em conflitos armados no
mundo, com um pequeno texto dedicado a cada uma delas explicando as
circunstâncias de sua morte (os brasileiros Jean Charles, Chico Mendes e Sérgio
Vieira de Melo aparecem nesse momento). São 15 minutos de uma plateia atônita,
involuntariamente parada de frente para um enorme muro, refletindo sobre tantas
atrocidades. E quando o show volta, eis uma parede gigante na tua cara e mais
nada. A banda está inteira do outro lado tocando o belíssimo dedilhado de Hey You e você não tem para onde olhar
enquanto escuta versos como “The wall was
to high as you can see / No matter how you try you cannot break free”. Não
tem o que fazer. Você é forçado a encarar o muro enquanto a música acontece. E
aí, meu amigo, minha amiga, não tem jeito: depois de 15 minutos lendo sobre
tragédias humanas, com a parede mais famosa da música bem na sua frente
enquanto uma das harmonias mais belas da história do rock corre pelos
autofalantes do estádio, é impossível você não se arrepiar a cada “can you feel me” da letra.
É um tremendo soco no estômago.
Talvez agora, por escrito, pareça bobo, mas ficar isolado da banda pelo muro te
dá uma sensação muito estranha. Não tem como descrever, o jeito é você ir lá
para entender. O muro cai, mas a sensação fica.
Enfim, é isso tudo. Esse show
consegue o que quase nenhum outro conseguiu: fazer o público refletir de
verdade sobre a mensagem passada. Roger Waters conseguiu, mais uma vez, ir além
na sua arte. Palmas, muitas palmas para ele, porque o cara é realmente foda.
Roger Waters |
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Thiago Carvalho, o Barata, mora em Brasília - DF, é guitarrista da banda de rock DF76, fã incondicional do Pink Floyd e agora colaborador oficial do Grave em Casa!
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Porra Barata. Sua resenha ficou ótima. Acho que estou ferrado no dia do Juízo Final. Não vou conseguir ir ver o show. Que merda...
ResponderExcluirSó com a sua resenha já me arrepio imaginando toda essa megaprodução.
Parabéns!!! Você não passaria fome fazendo resenha de shows. Aliás, tá aí uma nova profissão que você pode seguir.
Rafael Costa Morgado (Costinha)
Valeu, Costinha. Obrigado!
Excluir-Barata
Realmente, irmão,
ResponderExcluirVc foi um privilegiado por ter participado de um evento destes. Mas o melhor foi sua sensibilidade artística e técnica para captar um pouco do que você testemunhou (não achei termo melhor que esse) e colocá-lo da melhor maneira possível aqui para nós. Dá, quase, pra sentir a emoção de estar lá...
Parabéns e obrigado!